Numa pausa de fim-de-semana

14 10 2007

Terra de esperança

“Um dia, parado o tempo,
Nossas vidas cruzarão
Livres de Nome ou Lugar.
E de nós só ficarão
As melhores coisas que havia
De acordo com esse dia.

Amaremos de outro modo
Questionando o velho amor
Que antes nos comovia,
Quando solidão e dor
Era o que a alma ganhava
Da contingência em que estava.

Ali, o céu entre nós
Ao tacto real está,
A textura luminosa
De nossas vidas, trará
Deus, em sopro, ao nosso qu’rer.
Morte ali não tem poder.

O sofrer ou suspirar,
O cuidado, o desencanto,
A expectativa e o grito
Que vai do prazer ao pranto,
Nada precisa de estar
Onde eterno é o amar.

As horas farão o amor
Mais jovem e duradouro.
Antes do tempo conseguem
Refazer mais puro o ouro.
E não haverá lamento
Possível ao pensamento.

Nessa região suspensa
Sob o céu, só claridade,
Nossas almas se confundem
Em verdadeira unidade
E nada será capaz
De ao peito tirar a paz.

Terra dourada onde Deus
Em seu tempo um dia andou
Não como no mundo, onde Ele
Nem um momento habitou,
Onde seu passar se sente
Como algo nunca presente.

Meu coração pensa nisto
E sofro pelo só sonhado
E ela, que me faz feliz
No velho amor renovado,
Irreal é como o sonho
Que nestes versos componho.

Mas, quem sabe? Talvez isto
Não só desejo, visão.
Talvez o amor, felicidade
Que sinto na sem-razão
Seja outra realidade
Que o sonho vê de verdade.

Talvez que donde se encontre
Isto lance o seu conjuro.
Alguma coisa impossível?
Terá Deus confins ou muro?
Se este sonho aconteceu,
Não pode um dia ser meu?

Quem sabe o que são os sonhos?
E quem sabe o que Deus faz?
Talvez só a vida impeça
A revelação que traz
Beleza da fantasia.
Nada é só o que parecia.

Algures, bem perto de Deus,
Tudo será já visível.
Oh! Que eu não duvide mais
De que isto seja possível!
Mais estranho o que se tem
Que a centelha do além.

Meus olhos, de prazer, loucos
Porque tenho este pensar.
Eles não podem deter-me
Pois Deus não deixa de dar
Para o alto pensamento
O leve dom do momento.

Meu jardim está agora
Pleno, em nova floração,
A boca beija a alegria.
Porquê, não sei a razão.
Com o coração parado
Em águas de luz eu nado.

Um halo de esp’rança envolve
A Alma. Sou a criança
Que exclama: Vede! Encontrei
A estranha flor da esp’rança.
Ignota flor enterrada
De mortos sonhos gerada.

Senso tremente de ser
Mais que ao senso é permitido,
Ave do sentir ao ver
O ouro da terra escondido
Romper numa alvorada
Em sopro, luz desmaiada,
A presença entretecida
Com raios de uma luz distante,
Fascínio, poder roubado
De alegria radiante,
Eu me esvaio e desfaleço.
E o próprio sonho pareço.

E se não for como o vejo
Oh, Deus, trá-lo até mim!
Afasta de mim a dor
Porque Te sonhei assim!
Que aquilo que tanto anseio
Seja este divino enleio.

Que isto se pareça ao céu
E seja sempre meu lar,
Mesmo se o viver mesquinho
Só esta hora quis dar.
Em Deus será um instante
Eternidade bastante.”

Fernando Pessoa


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